📜Os Primeiros Biógrafos de São Francisco: Celano, Boaventura e a Construção de um Santo
A vida de São Francisco de Assis, um dos santos mais queridos e influentes do cristianismo, foi narrada com entusiasmo, piedade e intenções distintas por diversos autores desde sua morte em 1226. Entre esses autores, dois nomes se destacam como fundamentais para o conhecimento que temos do poverello de Assis: Frei Tomás de Celano — um contemporâneo do santo — e São Boaventura — teólogo e Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores. Ambos escreveram obras centrais sobre Francisco, mas com abordagens e objetivos bastante diferentes. Neste artigo, vamos explorar essas duas figuras e suas obras, contextualizando seus escritos e o impacto que tiveram na construção da imagem de São Francisco ao longo dos séculos.

📖 Tomás de Celano: O primeiro biógrafo
Frei Tomás de Celano foi um frade da primeira geração franciscana. Ele entrou na Ordem dos Frades Menores entre 1215 e 1221, portanto ainda em vida de Francisco. Como testemunha próxima dos acontecimentos e discípulo fervoroso do santo, Celano teve a oportunidade de conviver com irmãos que conheceram diretamente São Francisco. Sua missão como biógrafo começou em 1228, logo após a canonização do santo.
✍️ A Vita Prima (ou Primeira Vida)
A pedido do Papa Gregório IX, que também era amigo de Francisco, Tomás de Celano escreveu sua primeira obra: A Vita Beati Francisci (Vida do Bem-Aventurado Francisco), conhecida como “Vita Prima”. Finalizada por volta de 1228-1229, essa biografia teve como objetivo não apenas exaltar as virtudes de São Francisco, mas também consolidar sua imagem como santo oficial da Igreja.
A obra é rica em detalhes sobre a vida do santo, suas práticas de penitência, sua relação com os irmãos, seu amor pela criação e os inúmeros milagres atribuídos a ele. Tomás de Celano destaca a conformidade de Francisco com Cristo Crucificado e o apresenta como um novo apóstolo, pobre, humilde e radical no amor a Deus.

✨ O milagre das chagas
Um dos aspectos mais marcantes da Vita Prima é a descrição das chagas recebidas por Francisco no Monte Alverne, em 1224. Tomás apresenta o fenômeno com uma linguagem reverente e quase mística, ajudando a consolidar a ideia de Francisco como o primeiro estigmatizado da história cristã.
📃 A Vita Secunda (ou Segunda Vida)
Cerca de 15 anos depois, entre 1246 e 1247, Tomás escreveu a Vita Secunda, a pedido do Ministro Geral da Ordem à época, Frei Crescêncio de Jesi. Esse segundo texto, menos conhecido que o primeiro, procurava ampliar os relatos e adaptar a figura de Francisco para as necessidades institucionais da Ordem, que crescia e se estruturava em diferentes regiões da Europa. A Vita Secunda é mais serena e pedagógica, menos voltada ao milagre e mais centrada na espiritualidade cotidiana do santo.
📚 Outros escritos de Celano
Tomás de Celano também é autor de:
- Tratado dos Milagres ✨, um apêndice à Vita Prima com dezenas de milagres atribuídos a São Francisco após sua morte;
- Legenda para Uso no Coro, uma versão abreviada e litúrgica para ser lida nos ofícios;
- E possivelmente alguns hinos e poemas, entre eles o célebre Dies Irae, ainda que essa autoria seja debatida.
Celano foi, assim, um cronista e teólogo da memória franciscana, preocupado em transmitir fielmente aquilo que a primeira geração considerava essencial na figura de Francisco.

📖 São Boaventura: Teólogo e construtor da imagem oficial
São Boaventura (1217–1274) ingressou na Ordem dos Frades Menores por volta de 1243. Foi aluno da Universidade de Paris e tornou-se um dos mais importantes teólogos medievais. Em 1257, foi eleito Ministro Geral da Ordem e enfrentou o desafio de manter a unidade franciscana diante de tensões crescentes entre grupos mais rigoristas (os chamados “espirituais”) e aqueles mais institucionalizados.
Foi nesse contexto que ele decidiu produzir uma nova biografia oficial de São Francisco, buscando oferecer à Ordem uma narrativa unificada, espiritual e teologicamente sólida.
🌿 A Legenda Maior
A principal obra de São Boaventura sobre São Francisco é a Legenda Maior (Legenda Maior Sancti Francisci), escrita entre 1260 e 1263. A palavra “legenda” aqui não significa “invenção”, mas “leitura” (do latim legere, ler) — era uma obra pensada para ser lida em público, especialmente nos ofícios religiosos.
A Legenda Maior é profundamente teológica. Boaventura não se preocupa tanto em relatar os fatos históricos na ordem cronológica, mas em apresentar Francisco como modelo universal de santidade, configurado a Cristo em todos os aspectos: Nascimento, conversão, pregação, milagres, paixão (as chagas) e morte.
Boaventura interpreta a vida de Francisco com um olhar místico e simbólico, buscando mostrar como ele era um “alter Christus” — outro Cristo. A narrativa tem estrutura quase litúrgica e fortemente espiritual.

🔐 A Legenda Minor e os Milagres
Além da Legenda Maior, Boaventura também compôs a Legenda Minor, um resumo da biografia para uso litúrgico e comunitário, e um Tratado sobre os Milagres, inspirado na obra de Celano. Esses textos faziam parte de um projeto editorial e espiritual mais amplo, aprovado no Capítulo Geral da Ordem de 1263, que buscava uniformizar a imagem de São Francisco.
⚠️ A destruição das outras biografias
Um dos episódios mais controversos na história da tradição franciscana foi a decisão, tomada sob a liderança de São Boaventura e com aprovação do Capítulo Geral, de destruir ou recolher todas as outras biografias de São Francisco que circulavam até então. Entre essas estavam a Vita Prima e a Vita Secunda de Tomás de Celano, além de outras versões locais ou não-oficiais.
Essa ação visava proteger a unidade da Ordem e garantir que a figura de São Francisco fosse compreendida dentro de uma teologia segura, reconhecida pela Igreja. Boaventura acreditava que narrativas divergentes ou excessivamente maravilhosas poderiam causar confusão e fomentar divisões internas.
Contudo, essa medida também apagou nuances importantes da figura de Francisco, que emergiam das diferentes vozes de seus primeiros seguidores. Os escritos de Celano, por exemplo, trazem um Francisco mais humano, próximo do povo e profundamente marcado por seu tempo.
🔄 O retorno às fontes
A partir do século XIX, com o surgimento da historiografia crítica e o interesse renovado pelos textos antigos, os escritos de Tomás de Celano foram resgatados e voltaram a ser valorizados por estudiosos e espiritualistas. Hoje, tanto os textos de Celano quanto os de Boaventura são considerados complementares para se compreender a complexa figura de São Francisco: Um homem de oração profunda, mas também um reformador popular; um místico, mas também um profeta social.
A pluralidade das primeiras fontes revela que Francisco foi uma figura inesgotável, que inspirou interpretações múltiplas desde o início. A tentativa de unificação feita por Boaventura ajudou a preservar a identidade institucional da Ordem, mas também levou a séculos de esquecimento de vozes preciosas que hoje voltamos a escutar.

✨ Conclusão: vozes que ecoam séculos depois
As biografias de Tomás de Celano e de São Boaventura não são apenas relatos históricos. Elas são expressões da forma como diferentes gerações dos primeiros franciscanos compreenderam, celebraram e buscaram imitar a vida de seu fundador. Enquanto Celano oferece um olhar próximo, cheio de ternura e admiração direta, Boaventura eleva Francisco a um modelo universal, interpretado pela lente da teologia e da mística cristã.
Conhecer ambas as perspectivas é essencial para captar a riqueza da herança franciscana. E, mais ainda, para reconhecer como a imagem dos santos — mesmo os mais amados — é construída por meio de narrativas, escolhas editoriais, contextos históricos e disputas de memória.
Hoje, graças ao trabalho de pesquisadores e da própria Ordem Franciscana, podemos acessar essas fontes em sua diversidade e aprofundar nossa relação com Francisco de Assis. Um santo que, apesar de tantas interpretações, continua a falar com simplicidade e força ao coração de milhões de pessoas. ✨🙏
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